quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Maria

Já sô um caco véi nesse meu sertão
Tudo qui juntei foi só prá ladrão
Futuca a tuia, pega o catadô
Vamo plantá feijão no pó.
[ Elomar ]

Acorda Maria, corre aqui, vem me ver pois está vindo uma tempestade dali do horizonte pra cá. Vem Maria, está escurecendo e não quero me perder de você, não quero que você se perca de mim também, já quase não enxergo nada além desse breu que fica antes da tormenta cair e arrasar com tudo; vem cá que esse silêncio não é de calmaria, é de guerra, de tortura.
Tô pensando muito em você, na esperança que você guardava a sete chaves pra não perder nunca. Mas perdeu, Maria, você perdeu as chaves, e tua esperança está guardada naquele baú velho no fundo do quintal, escondido atrás dos girassóis - mas já não existem girassóis, nem quintal, a chuva começa a cair.
Você se perdeu, mas eu continuo, o teto treme a porta bate, Maria, mas continuo; acenda o lampião e me segue, num vá por aí não aí tem lágrima e sofrimento, vem desse lado. Vem Maria, não vá se perder por aí, esse mundo é vasto e você não acha o final dele, não adianta, não corra tanto assim sem saber para onde vai, existem mais desvios do que estradas por essas terras afora.
E agora Maria? Repara o cais, repara que o mar parece o céu em noite sem estrela, repara enquanto teu olho não se cansa de olhar, repara os barcos afundando naquele infinito; os barcos não voltam Maria, ficam lá, não siga os barcos, foge das ondas, foge que tá tudo indo embora, vem pra cá, vem que não sei se aguento muito tempo, tá esfriando, e não passo de uma voz fraca no fundo da casa, com medo da tormenta; sou frágil como dia de sol Maria, sou frágil como uma tarde calma.
Lembra, quando os dias tinham cheiro de orvalho e café pela manhã, de farinha e água pela tarde, e dama-da-noite pra adormecer, lembra que nascia flor nesse quintal, lembra que tinha vida nesse quintal? Lembra Maria? Lembra de domingo, lembra da missa, lembra da confusão de todos os cheiros em meio àquela preguiça que era só nossa? Diz que lembra, Diz alto pra eu saber que tudo aquilo existiu, diz alto que a chuva abafa sua voz... Diz alto que a porta bate com força... Diz alto pra eu lembrar da sua voz, seca.
Será que já se foi tanto tempo minha flor? Será que já se foi, o nosso tempo? Não te quero assim Maria, te quero como antes; anda, me dá a sua mão, encosta teu vestido nessa mão que tem o formato de teus ossos e a leveza da chita que te vestia, encosta que o mar já subiu e invadiu o quintal, deita aqui Maria, que a porta não aguenta muito tempo, encosta no meu peito que nesse momento, Maria, estamos terrivelmente sozinhos.


"E ninguém nem percebia
Que o real e a fantasia
Se separam no final"
[ Geraldo Azevedo ]