sábado, 27 de junho de 2009

Três vezes, amor.

Enquanto a gente se arrasta
Eu prefiro isso aqui
Os automóveis são livres e agora
É preciso coragem
Olho meu rosto no espelho
E depois vou dormir


Chegava a senhora de cachecol vermelho e luvinhas pretas, contrastando as cores e adereços com sua idade já avançada, uma figura anacrônica em sua essência e apresentação, cabelos brancos disfarçados com tintura, mas possuia todos os dentes de forma muito bem apresentável - era o que salientava sempre, ao falarem de seus cabelos.

A neblina que restava mantinha o ar úmido, elevando assim a sensação de frio. Então, chegava a senhora se sentava ao lado do casal, sem pretenção alguma, e com muito zelo lhes pergunta o que faziam por ali - havia aula no momento e o pátio estava deserto. Não havia resposta cabível à tal pergunta, eram menino e menina, e estavam sentados no banco de concreto da escola; quando na verdade deviam estar em sala, talvez aprendendo algo que nunca usariam, mas se julga importante que aprendam. Não namoravam, e, portanto, sem o entrosamento do casal que se conhece por olhar os dois se perdem e ficam mudos, ela sorri e compreende que seria melhor não saber, se oferece para partilhar o frio daquela manhã de junho e fica por ali.
A mocinha se recosta no ombro do menino, demonstrando sentir frio. A senhora nesse momento pensava se talvez estivessem juntos, e então pergunta:
- Namoram, crianças?
Os dois riem e dizem que sim, mas cada qual com seu respectivo par, grandes amigos - salientam. Ela ajeitava o cachecol com grande cuidado, e lhes reformula a pergunta:
- Se amam?
Novamente risadas ecoam ao pático, mas o que se sucede é um grande abraço pontuado por uma afirmação contente; e o amor habitava naquele gesto singelo.
O menino lhe pergunta:
- E quanto à senhora, existe alguém em quem pense com mais frequência?
Era a vez da senhora de rir, ajeitar novamente o cachecol e declarar ter tido um único homem, ter sentido apenas um homem, no instante exato em que ela suspira e os olhos brilham, ele então reformula também:
E esse homem, o amava?
Ela então pega as mãos dos dois, com grande desvelo, e lhes segreda sua história sob a neblina de Junho:

- Anos atrás, muitos anos, me casei com o moço que conquistara o carinho de meu pai, eu tinha uma grande consideração por ele, e por amor a meu pai, me casei; e esse foi meu primeiro sacrifíco por amar. E vivi por três anos, pensando ter errado em meu idílio, e com três anos ao lado de um homem que até então eu não amara, descobri que talvez amar seja um tanto mais simples, pois se num domingo desses qualquer, me peguei sorrindo e festejando um título do time que ele torcia. Foi aí que percebi que eu não festejei o time, festejei a alegria daquele que dormia a meu lado todos os dias, abdiquei de meu repúdio ao futebol para partilhar sorrisos de meu homem; meu segundo sacrifício por amar.

A Senhora acende um cigarro, e seguida de uma longa tragada solta a fumaça com tamanha melancolia, como se visse a cena na fumaça que demorava a se dissipar em meio à névoa, se assustou ao vê-los olhando fixamente, esperando um desfexo, e prosseguiu:

- Senti que os três anos em que eu não o amara não tinham sido perdidos, mas ganhos, ganhei três longas chances de saber morar ao lado do amor. E de três em três, de títulos em títulos, eu ainda não sabia que o amor me exigiria um terceiro sacrifício; num dia desses, os pulmões de meu marido, se descobriram com câncer, lembro que ele chorou, e lembro de ter jogado todos os meus cigarros, e também os dele, ao vento, senti que nada daquilo salvaria meu amor, e ainda assim fiz com a firmeza de que estava lhe salvando a vida.

Novamente ela para, traga com ainda mais força e arremessa o cigarro. Ajeita o cachecol e se levanta, lançando uma lágrima ao chão e fixando os olhos nos dois no exato momento em que o sinal ecoa pelo pátio.

2 comentários:

Guilherme disse...

Aposto que ele era corinthiano. Brimks, ótimo texto :D

e para Maitê disse...

- Um roteiro!


Há tempos não venho, adoçar um pouco minhas noites, por aqui.


ps: belo texto, só me surpreendeu, talvez até me irritou, ela ter desperdiçado um cigarro, dando apenas duas tragadas!!