terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Céu de Champagne

Era o quinto ou sexto dia de chuva, a cidade estava caótica - e também ele.

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Sujeira por todos os lados; quem disse que a chuva vem para limpar? Os detritos insistiam em voltar das casas de onde vieram, estreitando os laços íntimos entre os humanos e o lixo; foi nisso que pensou ao ligar a TV, num gesto automático e displicente já que não gostava de TV, assistiu a alguns depoimentos de 'mães que precisam cuidar de cinco filhos mas a chuva acabou com tudo', ou 'pais de família desempregados e sem ter pra onde ir', e se espantava com a semelhança de todas as cenas, que se repetiam com corpos diferentes, a dor era sempre a mesma, a matéria física do lixo que invade as casas retratando a miséria mental dos seres humanos. Quanta dor.
Todos vivem esse tempo de miséria ideológica e sentimental, e basta chover pra que ela se mostre a todos, que relembre o quão 'lixo' é o homem; desligou a TV, num gesto ainda mais automático, nunca gostou de TV.

Caminhou arrastado até o corredor e ligou o rádio, ligou na CBN, acendeu um cigarro e foi para a janela; chovia ainda. Entre tragadas incessantes pensava à respeito da lama em que todos se encontravam, e se sentia alheio, ou acima de tudo isso só porque ele, como outros poucos, no meio de toda essa merda e caos procurava o amor... Lunático e arrogante, procurando o amor enquanto todo mundo se fodia. O grande problema de se achar alheio por tal motivo, é estar abaixo da merda, estar abaixo do lixo; buscar o amor em uma ou duas trepadas ocasionais, encontrar a saudade e o ego inflado de liberdade, não o amor, isso lhe garantia a posição de ainda pior, por se achar melhor.

Acabaram os cigarros, a dor seguiu.

O rádio noticiava alguns deslizamentos em cidades próximas, pensou em trocar de rádio, mas algo estava lhe prendendo à todas aquelas desgraças, talvez por saber que sua casa não sofreria tão cedo desses problemas já que morava no12º andar de um prédio em uma área longe de rios, córregos, lixos e miséria; novamente se julgava acima, alheio.
Algumas prateleiras recheadas de poesia & filosofia & romance & ensaios & obras raras & vinis antigos & jazz & blues & bla bla bla bla. Sentia-se acima.
Saiu da janela, decidiu trocar de rádio e ouvir à algum cd, foi até a prateleira e pegou uma coleção de Nara Leão e colocou na vitrola. A chuva e a voz de Nara se misturavam num ritmo leve, algo que inspirava verão e alegria dentro do apartamento. Ao fim do disco, se sentia no melhor lugar do mundo; tocou a campainha. Foi até a porta pensando se e era a vizinha do andar de cima, 'quem dera', abriu e soltou uma breve interjeição de surpresa, havia um saco de lixo em frente à porta.
Preto, grande, aparentemente cheio e muito fedido, um saco de lixo normal como outro qualquer, exceto pelo fato de estar na porta de um apartamento de classe média, sem um motivo aparente.Decidiu recolher o saco, levou para o interior da casa. Imaginou quem poderia ter sido, alguma brincadeira de mal gosto, obviamente. Fechou a porta e se virou para o interior do apartamento, dessa vez se assustou; havia dois sacos de lixo no sofá.
Ficou alguns instantes pensando no que era aquilo, sabia que aqueles sacos não estavam ali antes, mas quem os colocou lá?
Foi até o banheiro a fim de lavar o rosto, mas ao abrir a porta, um monte de sacos cairam sobre ele, que levantou num susto se livrando da sujeira sobre seu corpo, mas não conseguia, os sacos não paravam de cair sobre ele, lhe tirando o ar pouco-a-pouco numa espécie de tortura, logo ele que se sentia longe de toda aquela sujeira, conseguiu um pouco de espaço no meio de toda aquela zorra e fugiu aos trancos e barrancos, mas a porta da frente estava tomada de sacos iguais, pretos de luto; as poesias não lhe salvariam. Começou a gritar, e chorar, e pensar em tudo que havia vivido, e pensar que era um jeito sujo e horrível de se morrer 'Afogado em lixo', pensou em tudo isso e muito mais, encolhido no sofá enquanto o apartamento era tomado por sacos e mais sacos.
Chorou enquanto ficava cercado, chorou ao olhar para a janela e perceber que a chuva havia passado e até se podia ver as cores 'pós-chuva' do céu, chorou por saber que não havia encontrado o amor, chorou não poder enxergar mais nada, chorou por não estar alheio à miséria.
O ar foi ficando escasso, e já não havia mais pânico; era a paz naquele instante, de ter vivido uma vida pensando ser algo que não era, era a paz de estar sendo purificado, no meio do lixo.

Enquanto isso, ao fundo, muito distante, a voz do rádio dizia que o sol voltaria no dia seguinte. Sem chuva, sem caos.


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